quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Estou viciado em África

Por Manoel Soares
17 de dezembro de 2010 / Publicado no Diário Gaúcho


Depois de conhecer a África do Sul durante a Copa do Mundo, fiquei intrigado, pois, apesar de ser uma das experiências mais fortes da minha vida, não vi muito das nossas raízes no povo sul-africano. Nesta semana, estou entendendo o por quê.
Estou escrevendo para vocês no Senegal, ao norte do continente africano. Essa viagem está sendo o máximo. Agora, entendo as raízes do nosso Carnaval, da nossa musicalidade, dos nossos lábios carnudos e dos nossos quadris largos.
Ontem, fui visitar a Ilha de Gorée. Era para lá que os negros iam antes de serem vendidos. Um dos pontos mais dolorosos foi conhecer o Portão do Não Retorno, uma porta que havia nas senzalas que dava direto para o oceano. Quem entrava naquele corredor estava condenado a perder totalmente o contato com a família.
Chorei muito ao imaginar a dor dos meus ancestrais. Mas eles lutam para que a nossa história não seja somente de dor e tristeza, tanto que uma das novidades do Senegal é o Monumento da Renascença, uma estátua com mais de 50m de altura e mais de 60 toneladas de bronze que simboliza a nova África, que se posiciona como um futuro promissor.
O Brasil para eles é referência, tanto que, no 3º Festival Mundial de Artes Negras, do qual estou participando, estão nos homenageando. Em breve, volto para as nossas quebradas e levo mais notícias.
Forte abraço, galera!

Foto: Manoel Soares

Seletividade

Por Rodrigo Ramos

É indiscutível a existência de uma clientela preferencial por parte das agências de punitividade ao redor do Mundo e no Brasil não é diferente. Normalmente, os criminalizados são pobres, moradores de áreas consideradas de risco e em sua maioria afro-descendentes. Essa seletividade do sistema penal se deve a discricionariedade dos agentes estatais designados para manter a ‘ordem’ e a ‘paz’.

Vivemos em um país que se orgulha de seu espectro multifacetado e que gosta de propagandear que aqui não há racismo ou discriminação de qualquer gênero. Números mostram que a maioria dos consumidores de drogas ilícitas são pessoas brancas de classe média-alta. Por outro lado, em grande parte das vezes, os imputados por crimes de uso e posse de entorpecentes são jovens, negros e pobres.

As questões envolvendo preconceito e seletividade do sistema penal são muito bem abordadas nos livros Cabeça de Porco de Celso Athayde, MV Bill e Luiz Eduardo Soares e Da Revolta ao Crime S/A de Alba Zaluar. São duas obras obrigatórias para quem quer entender melhor esse país que nos prega tantas peças, ambas as obras com força sociológica e antropológica.

Uma dos questionamentos apontados, especialmente por parte de Zaluar, é a famosa ‘atitude suspeita’ que legítima boa parte das ações policiais. Para alguns a ‘atitude suspeita’, pode ser a simples maneira de uma pessoa caminhar. Isso já acarretará julgamentos morais e podem redundar em uma abordagem policial. Vou citar um exemplo pessoal que caracteriza bem como funciona o pensamento estigmatizado e estigmatizador dos policiais aqui no Brasil.

Atuei como jornalista esportivo por mais de cinco anos e quando andava pelos estádios com o crachá escrito IMPRENSA, tinha a sensação de poder fazer o que bem entendesse, não havia qualquer aproximação policial. Mesmo que eu andasse com portentosas mochilas que poderiam carregar inúmeras coisas, proibidas ou não. Em minha época de atuação só fui abordado por policiais na Argentina, no nosso país vizinho fizeram uma rigorosa inspeção em minha mochila. Em minha época de torcedor também havia diferenças, quando entrava nas sociais dos estádios aqui em Porto Alegre recebia pouca ou nenhuma revista. Ainda mais quando estava sem camiseta de time ou usando calças. Já quando queria assistir os jogos na parte destinada as torcidas organizadas ou auto-entituladas não organizada ou estava de bermuda e chinelo recebia uma abordagem digna de caracterizar a revista como ato sexual.

Os exemplos da seletividade são inúmeros e a maneira de pensar da sociedade, a qual se reflete na atuação dos agentes do governo só comprova que quase sempre os mesmos são perseguidos e, portanto, vemos um certo tipo de pessoa acabando por ser enquadrada como ‘marginal’, usando uma das expressões favoritas dos punitivistas. Um simples emprego ou a forma de se vestir é capaz de iludir o sistema, se eu pudesse dar uma dica para fugir de ‘problemas’ com a polícia eu diria: use um terno e mantenha um olhar que sugira superioridade!

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

As drogas, as origens da proibição e as conseqüências disso

Quando existe um problema envolvendo drogas no nosso país, de pronto o senso comum pede mais punição e as medidas pirotécnicas como aquelas vistas recentemente no Rio de Janeiro só demonstram a ineficiência do modelo repressivista. Este modelo de guerra às drogas tem como berço os Estados Unidos da América do Norte e teve seu ápice com o final da Guerra Fria. Pois, a partir dali, não havia mais um inimigo a ser combatido. No entanto, a indústria bélica estadunidense precisava de um novo algoz e o encontrou nos traficantes de drogas e, também, nos usuários. Com isso, combatia-se tanto o comerciante, desde o início da produção normalmente em países subdesenvolvidos, quanto o consumidor que igualmente era criminalizado.

No país vizinho da América do Norte entre os anos de 1985 e 2000 houve o dobro da população carcerária, formada normalmente por pessoas de camadas sociais mais baixas e que tinham cometido crimes de pequena monta. A realidade brasileira, que seguiu a risca as orientações das políticas criminais externas não é muito diferente. O antiproibicionismo encontrado principalmente na Europa Ocidental, ainda é muito tímido em nossas terras. Com a criação da Nova Lei de Drogas de 2006 (Lei 11.343), muitos comemoraram o motivo da descarcerização dos crimes de uso e posse de entorpecentes. Mas tais condutas ainda são crimes e, portanto, ainda são estigmatizadas pelo sistema. Na prática do judiciário ocorre que o usuário de drogas acaba sendo coagido a aderir ao instituto Transação Penal que, por vezes, é mais gravoso do que uma condenação criminal. Claro, tem de se levar em conta todo o peso de uma condenação criminal, mas esse instituto citado anteriormente é utilizado de forma muito discricionária pelas autoridades judiciárias.

A discricionariedade aliada com a falta de critérios nas leis para diferenciar comerciantes e usuários de drogas fazem com que facilmente um sujeito que carregue consigo drogas para consumo próprio, seja enquadrado como traficante ou ao contrário. Tudo isso dependendo da boa vontade dos agentes repressivos que trabalham com uma lógica conhecida, a qual criminaliza pessoas por sua cor, suas crenças e os locais nos quais elas moram. Pesquisas demonstram que os maiores consumidores de drogas são pessoas brancas de classe média-alta. Já a realidade do judiciário nos deixa claro que os criminalizados são jovens, geralmente negros e pobres.

A quem serve a criminalização do uso de drogas? Essa não é uma pergunta sem resposta, mas não há provas concretas para respondê-la e portanto é preciso ser prudente. Outra pergunta a ser feita é se a violência vem do tráfico ou da criminalização? Esta é de resposta menos duvidosa, não existiria violência se não houvesse proibição ou se existe em sentido de multas administrativas. Mas a máquina do tráfico, criada com a conivência e omissão do Estado acaba gerando a dita guerra que vivemos. De tudo isso fica a conclusão de que soluções simples não são adequadas ao tema drogas. Bem como, o repressivismo deveria ser uma etapa superada nesse momento que vivemos.

Rodrigo Ramos - Porto Alegre
Colaborador

As pedras de Mandela

Coluna de Manoel Soares em 10 de dezembro de 2010 | Categorias: Coluna Diário Gaúcho

Estou lendo um livro de reflexões de Nelson Mandela durante os anos em que ele ficou preso na África do Sul. Foram 27 anos fechado. Nesse período, pelo que conta o livro, ele pôde refletir sobre tudo que acontecia em sua vida naquele momento, de bom e de ruim.

Umas das reflexões dele é sobre o processo de escravidão que a África viveu. Foram mais de 11 milhões de pessoas retiradas de sua terra natal para servir de mercadoria e mão de obra forçada no mundo. Só o Brasil recebeu cerca de 6 milhões de escravos, uma verdadeira barbárie.

Óbvio que ninguém em sã consciência concorda com esse absurdo, mas boa parte do crescimento que vemos à nossa volta foi consequência desse fato. Se a escravidão não tivesse rolado, o Brasil não teria a cara que tem hoje: o país mais negro do mundo fora do continente africano.

Isso quer dizer que temos de achar maneira a escravidão? Claro que não, mas nos ajuda a entender que mesmo as coisas ruins têm consequências que podem produzir cenários construtivos. Se não ocorresse o apartheid na África do Sul, Mandela não teria sido preso. Se ele não fosse preso, aquele país não se uniria para, um dia, eleger seu primeiro presidente negro. E por aí vai.

Nossa vida é similar. Muita coisa ruim acontece. Precisamos ser tranquilos com esses momentos e não nos desesperar. Por mais que pareça fora de ordem, existe uma lógica universal que rege o mundo. Não quer dizer que vamos ficar levantando as mãos para o céu e batendo palmas para as desgraças, mas vamos, a partir delas, construir.

Problemas sempre virão, e em cima de qualquer pessoa, independentemente de raça, classe social ou sexo. O que muda é a forma de enfrentar esses pepinos. E, na boa, não se morda com as pedras que te atiram na vida, pois, com elas, talvez, você possa construir um castelo maravilhoso. Como diz Mandela, devemos querer nossos inimigos vivos, gordos e bem pertinho da gente, para que eles vejam que o esforço de nos ferrar foi em vão.

Beijo no coração, galera, e até semana que vem!

Manoel Soares